A Bíblia Sagrada, guia de todo cristão e cristã, não é um livro fácil de ser lido e, principalmente, compreendido. Inúmeros erros de interpretação são retratados nos livros de história e se repetem ainda hoje. Jesus, em seus embates com os fariseus, nos deixou uma grande lição: como a palavra do Pai deve ser lida.


Não se trata de perguntar: “Quais são os textos da Bíblia sobre determinado assunto?” Qualquer um pode fazer uma lista e citá-los. O que devemos nos perguntar é: “Como interpretar estes textos?” “Como determinar aquilo que estes textos realmente querem dizer?”
A interpretação literal afirma entender o texto unicamente conforme o que ele diz, sem interpretar o texto, mas simplesmente lê-lo como ele é. Mas para que um texto signifique algo, ele precisa passar pela mente de alguém. A compreensão das palavras, que determina o sentido do texto, é interpretação.



A interpretação literal e a leitura histórico-crítica

É importante prestar atenção às diversas formas de se ler um texto, especialmente quando lidamos com textos antigos como a Bíblia. As palavras podem ter um determinado significado para nós hoje e, na época das pessoas que as escreveram, seu significado ter sido totalmente diferente.
Façamos a comparação com a outra abordagem, a da leitura histórico-crítica. A regra aqui diz que a significação do texto é dada por aquele que o escreveu no passado. Para afirmar qual é o ensinamento dado pelo texto bíblico hoje, primeiro é preciso compreendê-lo em sua situação original e então transportar seu significado para o presente. 


Para ficar mais simples de entender, vejamos algumas proibições presentes na Biblia: comer carne de porco ou frutos do mar, não comer frutas de uma árvore com menos de 3 anos, não cultivar duas plantas diferentes no mesmo jardim, não semear a terra mais do que 7 anos, não usar vestimentas tecidas com fios diferentes, não cortar o cabelo, raspar a barba ou fazer tatuagens. Por esses exemplos seríamos todos pecadores, não? Mas a nova maneira de interpretar a Bíblia ensinada por Jesus geralmente põe em xeque algumas interpretações tradicionais e levanta questões muito sérias sobre a religião e a sociedade. Não é de surpreender que algumas igrejas hesitem em usá-lo. Nessa perspectiva as igrejas protestantes sempre valorizaram à interpretação histórico crítica.

As comunidades cristãs retratadas nos 4 Evangelhos não falam de homossexualidade como o movimento de Paulo o fez, em seus escritos. Enquanto as comunidades de Marcos, Mateus, Lucas e João parecem focar em outros problemas de convivência humana (onde a justiça e amor são temas óbvios), já Paulo vai transferindo sua própria cultura às novas comunidades. São traçados comportamentos específicos, por exemplo, para mulheres (1 Coríntios 14.34; 1 Coríntios 11. 5-6) . Paulo também apresenta a forma de convívio que lhe era perfeita, dada a sua cultura. "Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo... Porque, na verdade, o homem não deve cobrir a cabeça, por ser ele imagem e glória de Deus, mas a mulher é glória do homem. Porque o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do homem... Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade." 1 Co 11: 3,7,8-10.

Pode haver também em Paulo uma releitura da cultura grega – Paulo é um homem que vive um mundo Greco-romano com afinco (é soldado, escreve grego). A homossexualidade nessas duas culturas definia níveis de poder masculino: os nobres gregos podiam se utilizar dos rapazes até criarem barba (e isso certamente denota um forte caráter de pedofilia ); os romanos, como prova final de conquista a algum povo, além do estupro às mulheres, estupravam os homens prisioneiros de guerra. Temos que levar em conta como as relações homossexuais nas comunidades Greco-romanas eram concebidas e porque Paulo se debate tanto com elas. A condenação do corpo é assunto constante para ele, e ele elabora de maneira especial em Romanos 7. E sabemos que ele mantinha atitudes de autopunição para que não corresse o risco de perder sua salvação (1 Coríntios 9.27 Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado).

Paulo tem também em suas raízes a cultura hebraica. No Antigo Testamento, em contextos de discussão sobre pureza e impureza, os comportamentos em geral, também sexuais, faziam parte da lei do Antigo Testamento – em Gênesis (Gn 19, 1-11), Levítico (Lv 18,22 e 20, 13), Juízes (Jz 19,22-30). O mínimo que disso se constata é que a homossexualidade já existia, desde o Antigo Testamento. Mesmo assim, é bom destacar que o grande pecado de Sodoma e Gomorra, se lido com atenção, não eram os “bacanais” que ganharam destaque no Cinema e na retórica evangélica, e sim a falta de hospitalidade daquele povo. Aos nossos olhos hodiernos, a oferta de Ló em entregar as suas duas filhas aos homens que batiam à porta, soa como violência paterna. E deveria, isso sim, provocar manifestações contrárias em nossa cultura. A exclusão de pessoas (não merecedoras de inclusão em bênçãos, vida em comunhão plena) é, essa sim, atitude “sodomita”. E se essas pessoas forem “anjos”?

Mesmo a epístola de Tiago, tão “problemática” para Lutero, nem de longe cita a homossexualidade. Outras cartas, outros livros da Bíblia focam tantas outras situações no convívio comunitário que, seria uma estupidez total, tornar a discussão sobre homossexualidade, bênção a homossexuais, sacerdócio de homossexuais, algo que dividiria a igreja, algo central na discussão de pessoas cristãs. 

A dificuldade na aceitação de pessoas homossexuais torna visíveis as diferenças na interpretação e na vivência do Evangelho. É compreensível que a sociedade hebraica estivesse preocupada com relações sexuais que produzissem mais gente. O “povo eleito” precisava ocupar a terra, precisava gente que substituísse gente que tombara em batalhas pela conquista da terra. A história de Tamar revela os múltiplos pecados dos irmãos que não procriaram (um jogava sua semente no chão! Gênesis 38). Descendentes sanguíneos (Ruth é exceção) são a garantia do sustento na velhice, são o apoio da sociedade para desamparados (órfãos e viúvas). A homossexualidade não gerava filhos e filhas e, portanto, não servia para a sociedade de Israel – era algo como trair a expectativa do clã. A Bíblia relata e sinaliza vários problemas de ordem sexual. Davi e Batseba(2 Samuel 11), as filhas de Ló que se deitam com o pai para gerar descendentes (Gênesis 19). Tais situações não são novas dentro da história da Bíblia, mas são relidas. No Novo Testamento, mais uma vez o assunto vem à tona, quando Jesus ressuscita o filho da viúva de Naim (Lucas 7.11-15), restabelecendo a dignidade e o amparo à viúva. 

Evangelho proclamado é Evangelho que acolhe, lança fora o medo e provoca mudança na ética, no cotidiano. Deixa claros os relacionamentos, transforma-os pelo amor e pela comunhão. Por exemplo, alguns “crimes sexuais”, quando mulheres – e só mulheres (sic!) – podiam ser mortas por “legítima defesa da honra” no Brasil, só puderam ser denunciados ao se estudar textos como quando Jesus se depara com a situação da mulher “adúltera”, em que diz claramente: “quem estiver livre de pecado atire a primeira pedra” (João 8.7). Paulo pode, sim, estar denunciando pedofilia, pode estar denunciando abuso de poder, pode estar denunciando violência ou falta de higiene. E por isso mesmo, Evangelho precisa ser lido em profundidade e amor.

Tornar pessoas homossexuais, por si só, não merecedoras da graça de Deus é algo abominável, uma vez que solidariedade, amparo, sustento na velhice ou nas dificuldades, hoje em dia, são comuns a cidadãos e cidadãs – qualquer seja o gênero ou a orientação sexual. A centralidade do Evangelho é a justiça e a dignidade que não se atém a vínculos sanguíneos. O Reino de Deus é anunciado para que haja transformação em nossa vida já aqui, de maneira a revelar poderes que não trazem vida. Novas formas familiares dão conta da adoção de crianças e adolescentes em situação de risco, inclusive, por pessoas homossexuais. Há uma frase que resume essa forma de atuar diretamente na educação e amparo de outras pessoas: “melhor dois pais do que nenhum”.

Condicionar a bênção de Deus à orientação sexual é exercer um poder sobre a vida da outra pessoa, que só Deus tem. Práticas sexuais de pessoas homossexuais acontecem também em relacionamentos heterossexuais: qual é o problema, então, que a Bíblia nos traz?

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